- por Paulo Jacobina
Vivemos em uma sociedade de consumo, mas poucos, realmente, entendem a amplitude deste infeliz fato. Por sua natureza, o consumo necessita de coisas que, como o seu próprio nome indica, sejam consumidas, isto é, que sejam perecíveis e sirvam de alimento para algo. Para além dos produtos com baixíssima vida útil, o consumo determina que as coisas são utilizadas apenas uma vez e, mesmo que a pessoa venha a fazer uso do objeto outras vezes, ele não está sendo consumido, posto que a sua essência já foi eliminada.
O carro “zero”, uma vez comprado, deixa de alimentar o Ego e, por mais que ainda seja utilizado, não gera mais a sensação de saciedade que o consumo determina. Por isso, há a necessidade da constante troca. Não porque o carro está velho ou é inútil, mas porque ele não está mais alimentando a fome do Ego, que pede cada vez mais em sua adicção. Assim, tão logo a coisa serve de alimento, o Ego começa o seu processo de digestão e a sua fome retorna, implacável, voraz, como se nunca tivesse sido saciada O mesmo se aplica ao caso de celulares, roupas, joias, imóveis, eletroeletrônicos e tantos outros itens presentes na vida “comum”.
Porém, o que poucos se atentam é que o Ego, este senhor voraz e insaciável, não se contenta apenas com o consumo de itens, mas também deseja outras coisas, como pessoas e valores. O consumo de pessoas se manifesta nas relações fluidas, descritas magistralmente por Bauman, nas quais os indivíduos não veem o outro como um igual, mas como uma “coisa” que deve proporcionar sensações enquanto se é consumida e, tão logo, a sensação desapareça, esta “coisa” é descartada como uma casca vazia e que não é mais capaz de atender às demandadas do ego. Se o Ego não sente mais o frisson do consumo, não lhe serve mais e a coisa deve ser descartada para que uma nova ocupe os seu lugar. Às vezes, quando o vício é grande e a “secura” se manifesta, até é possível tentar as cascas vazias a fim de se encontrar algum alimento que, porventura, não tenha sido consumido. Porém, mesmo que não tenha sido, ainda assim, não é o suficiente para atender à fome do Ego.
E Ego é um senhor implacável e a tudo busca devorar, inclusive, valores. Valores são consumidos constantemente pelas pessoas sem que elas percebam. É preciso defender uma pauta, não pela sua importância, não para vivenciá-la, mas para dizer, com todas as forças e em todas as mídias sociais, que se está “engajado” em algo. Postar fotos associadas a temas considerados importantes; o uso de hashtags da moda; vestir-se de acordo com um determinado estilo; dizer que se alimenta de determinados produtos; falar que pratica yoga; que não come carne; que ouve Nina Simone; que lê Garcia Márquez; que compra em brechó, dizendo-se sustentável; dentre tantos outros, nada mais é do que o consumo de valores a fim de alimentar a fome do próprio Ego, que busca se engrandecer.
O engrandecimento tanto se dá pelo o que se consume, quanto pela diminuição do resquício de humanidade que ainda percebe no outro, em seu imposto processo de “coisificação”. Aquilo o que o outro consome é tosco, pobre, fraco, ao passo que o que o meu Ego consome é refinado, rico e forte, portanto, a pequenez do outro, enaltece a grandeza e o poder do meu Ego. E isso deve ser dito com todas as palavras, constantemente, pois o Ego só permite a existência de um único ser, ele mesmo.
Se o Ego valoriza o outro, é porque dele se alimenta, pois os meus são melhores do que os do outro. Os meus são belos, inteligentes, refinados, me proporcionam status, mas só enquanto consigo consumi-los. No momento no qual a fome do Ego não se sente mais nutrida pelos meus, eles se tornam coisas descartáveis e que devem ser deixados de lado. Não como um objeto esquecido, mas como um objeto que deve ser execrado a fim de que ninguém mais os consuma. Como um objeto que deve ser consumido da existência e, portanto, deixar de existir.
E, tal qual acontece na chamada “vida profana”, acontece na vida magística. O Ego consome títulos, iniciações, decks de tarô, técnicas, livros, participações em eventos e ingresso no sistema magístico “da vez”. Se, dizer ser thelemita me faz especial, por ser diferente a tudo o que foi feito até então, então o meu Ego quer que eu seja thelemita e fará tudo o que quiseres, pois este é o Todo da Sua Lei. Se Thelema virou “modinha” e não me gera mais destaque, adentro a outro sistema mais oculto e com menos praticantes. Magia do Caos, Satanismo, linhas vinculadas ao caminho da mão esquerda, Aghoris, e, por fim, o sistema do meu próprio Ego, aquele que é construído com uma única função: devorar a todos os outros sistemas.
O sistema do meu Ego é o mais poderoso, o mais completo e o mais eficaz, posto que não é o do outro. E, qualquer um que ameace revelar a verdade, que mostre que todos os títulos, que todas as fotos nas mídias sociais, que todos os discursos são vazios, a este merece especial atenção da língua voraz do meu Ego, que o infecta para que seja “coisificado” e contaminado de tal forma, que não possa ser consumido por ninguém.
Para vencermos este monstro, precisamos aprender com Perseu, que pediu ajuda aos Deuses a fim de descobrir o caminho a trilhar. E, por isso, recebeu os artefatos mágicos e o discernimento de não olhar para a Medusa de frente, pois ela o mataria, transformando-o em uma coisa. Apenas com a autocrítica, com o olhar para si, a fim de compreender quais são as nossas verdadeiras necessidades e onde nós realmente estamos, é que podemos decapitar o Ego, guardá-lo numa bolsa para utilizá-lo a fim de petrificar o que é, essencialmente, vazio de significado espiritual, como as tentativas de nos “coisificarem”.
Aqui, encerramos desejando cuidado e atenção a todos aqueles que trilham o caminho da magia, pois o Ego é um adversário perspicaz e ardiloso, que se disfarça de bonzinho, mas, na verdade, deseja te devorar. Fique atento e preste atenção, pois, quanto mais alto ele te levar, maior será a sua queda e maior será a força que ele exercerá para te aprisionar nesta ilusória torre de marfim, atacando a tudo e a todos que ameacem a Sua refeição, você.
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