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A origem do Mal

Atualizado: 19 de dez. de 2022

- por Paulo Jacobina

Uma questão necessariamente abordada por pensadores, que buscam estabelecer teorias acerca da natureza humana, envolve a existência do mal. Apesar de existirem pensamentos, como o platônico, com a sua ideia de Bem, de que o mundo manifesto é uma representação ou uma obra de uma entidade onipotente e boa, ao se observar, principalmente, a sociedade, constata-se que o mal existe. Tal constatação, para muitos, é o suficiente para se estabelecer que essa força criadora ou não é onipotente ou não é boa, fazendo, assim, ruir qualquer modelo de representatividade do Universo baseado nesses princípios.


Para compreender esse aparente paradoxo e perceber as suas falhas internas, torna-se necessária a análise de alguns pontos.


O primeiro ponto envolve um pensamento lógico. Se o Universo foi criado por uma entidade/força/divindade que é onipotente, necessariamente o mal deve estar inserido dentro do Universo. Caso o mal não fosse criado, isso significaria que a entidade criadora não é onipotente, pois não possuiria poder para criar o mal. Para ser onipotente, isto é, para ter a potência de tudo criar, a entidade deve a tudo criar sem deixar algo de fora da criação. Assim, logicamente, a ocorrência do mal é um argumento favorável à onipotência criadora.


Já o segundo ponto, que deve ser analisado, está associado ao modelo criativo adotado. Retomando ao uso da Alegoria da Caverna platônica, estabelece-se que o Bem é a realidade da qual tudo deriva. Em outras palavras, o Universo, isto é, o mundo manifesto representado pelo interior da Caverna, é uma representação do Bem e, por isso, não pode ser tratado como realidade, mas como uma ilusão. E, uma vez que o mal se encontra no interior da Caverna, ele também é uma ilusão. Importante salientar que, apesar de ser uma ilusão, o mundo manifesto existe, pois é um atributo da realidade, isto é, do Bem. Dessa forma, apesar de existir, o mal é ilusório, uma percepção decorrente da representação do Bem.


O terceiro ponto acaba sendo uma derivação do segundo. Se aquilo que é percebido no mundo da matéria ou sistema representativo de base 4 é uma ilusão, então, assim como acontece com o mal, o conceito de bem que costuma ser apresentado também é ilusório. Nesse sentido, o que muitos estabelecem como sendo o bem, pode ser, na verdade, uma ilusão e não o Bem de fato.


Tal pensamento se desdobra revelando duas informações: (i) que o Bem possui duas polaridades, o bem e o mal; e (ii) aqueles que falam sobre o Bem, na verdade, podem estar falando sobre o bem, isto é, uma das facetas do Bem, mas que não é o verdadeiro Bem.


Sobre a primeira informação, os Hermetistas estabelecem a sua ocorrência dentro do Princípio da Polaridade, o qual explica que “em todas as coisas há dois polos, ou dois aspectos opostos, e que tais ‘opostos’ são em realidade tão somente os dois extremos da mesma coisa, e que entre eles residem os mais variados graus” [1]. Assim, da mesma forma com que calor e frio são polos de uma mesma coisa, a temperatura, o que as pessoas chamam de bem e de mal, também são polaridades de algo maior, o Bem.


Enquanto sobre a segunda informação, verifica-se que pessoas podem defender um bem relativo, isto é, que está inserido dentro de um contexto, mas que não se aplica a todos, pois não é absoluto e, portanto, é irreal. Ao defenderem que, o que é o bem para um, não será necessariamente o bem para o outro, apegam-se ao relativismo decorrente da representatividade e se afastam da ocorrência da realidade, que é absoluta.


O quarto ponto é uma consequência do terceiro, posto estabelecer que aquilo o que se entende por bem e mal são aspectos do Bem. Isso é, o bem é uma característica positiva do Bem, enquanto o mal seria uma característica negativa. Necessário apontar que positivo e negativo aqui não possuem conotação de juízo de valor, mas de algo que se revela e que se oculta respectivamente, fazendo com que o bem seja uma forma limitada da revelação do Bem, ao passo que o mal é um aspecto da Sua ausência, tal qual o pensamento socrático da virtude e do vício, enquanto a virtude é o conhecimento, o vício é a ignorância[2]. Analogamente, pode-se entender tal fato com os conceitos do claro e do escuro, enquanto o claro é a presença da luz, o escuro é a manifestação da sua ausência.


Tendo esse pensamento por base e sabendo que o Bem possui uma Ratio, verifica-se que a compreensão do Bem está vinculada ao conhecimento. Não apenas a um conhecimento tido por acadêmico, mas um prático, no qual a conduta do indivíduo, em qualquer nível em que se manifeste, estará em sintonia com a Harmonia do Todo, em algo que se costuma chamar de sabedoria. Dessa forma, a prática do bem deriva de um conhecimento limitado acerca do Bem, enquanto o mal seria a prática decorrente do desconhecimento do Bem.


Assim, o bem e o mal sempre andam juntos, pois, a prática do bem, por envolver um conhecimento limitado do que é o Bem, necessariamente carrega consigo um desconhecimento e, portanto, a conduta do mal. Ademais, como a inação também é uma ação, caso o indivíduo opte por não praticar o bem visando não gerar o mal, ele apenas estará permitindo que o mal se manifeste pelo desconhecimento do Bem. Portanto, praticar o bem, mesmo sendo uma forma limitada do Bem, automaticamente, diminui a incidência do mal no mundo, revelando-se como a conduta a ser estabelecida pelo indivíduo. E, mesmo do ponto de vista da probabilidade, praticar o bem se revela uma escolha acertada, como constatou o matemático francês Blaise Pascal (1623 – 1662), no que ficou conhecido como a Aposta de Pascal:


O argumento de Pascal era o seguinte: partamos do pressuposto de que não sabemos se Deus existe ou não e, portanto, designemos uma probabilidade de 50% para cada proposição. Como devemos ponderar essas probabilidades ao decidirmos se devemos ou não levar uma vida pia? Se agirmos piamente e Deus existir, argumentou Pascal, nosso ganho – a felicidade eterna – será infinito. Se, por outro lado, Deus não existir, nossa perda, ou retorno negativo, será pequena – os sacrifícios da piedade. Para ponderar esses possíveis ganhos e perdas, propôs Pascal, multiplicamos a probabilidade de cada resultado possível por suas consequências e depois as somamos, formando uma espécie de consequência média ou esperada. Em outras palavras, a esperança matemática do retorno por nós obtido com a piedade é meio infinito (nosso ganho se Deus existir) menos a metade de um número pequeno (nossa perda se Deus não existir). Pascal entendia suficientemente o infinito para saber que a resposta a esse cálculo é infinita, e assim o retorno esperado sobre a piedade é infinitamente positivo. Toda pessoa razoável, concluiu Pascal, deveria, portanto, seguir as leis de Deus.[3]

Em outras palavras, a probabilidade de se alcançar aquilo o que é Verdadeiro fazendo o que é o bem é infinitamente maior do que o de não o praticar e, portanto, é producente ao indivíduo se dedicar a conhecer o que é o Bem e se colocar em sintonia com a Sua Harmonia. Tal pensamento também se encontra presente em um dito oriental que ensina que “as sombras surgem no mundo, quando o homem se torna opaco”, ou seja, a medida em que o indivíduo se afasta da Ratio e, consequentemente, aumenta a sua pegada, ele se torna opaco, deixando de ser um veículo de manifestação do Bem.


Assim, quando o indivíduo não se percebe como parte integrante do Ambiente, estabelecendo uma diferenciação entre aquilo o que ele é e aquilo o que ele está, surge o mal. Esse aspecto do mal carrega similaridades com o conceito sartreano de mauvaise[4]. O filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905 – 1980) elabora melhor tal conceito em sua obra “L’être et le néant” (O Ser e o Nada) de 1943, na qual estabelece que mauvaise é uma tentativa de se escapar da responsabilização de seus próprios atos, isto é, de não se perceber como um todo. Na citada obra, dentre os exemplos apresentados pelo filósofo, pode-se destacar aquele que:


Retrata uma jovem sentada ao lado de um homem que – ela tem todos os motivos para suspeitar disso – está tentando seduzi-la. Mas, quando o homem pega a sua mão, a jovem tenta esquivar-se da necessidade de decidir se aceita ou repele as investidas dele fingindo que não percebeu: ela mantém a conversa intelectual enquanto deixa a mão na dele como se não se desse conta de que ele a segura. Na interpretação de Sartre, ela está numa situação de má-fé, porque de algum modo finge – não apenas para seu acompanhante, mas para si mesma – que pode distinguir-se de suas ações e posturas corporais, que sua mão é um objeto passivo, uma mera coisa, enquanto ela é, obviamente, um ser corporificado consciente que sabe o que está acontece e é responsável por suas ações ou pela ausência delas.[5] (grifos no original)

Tal qual a personagem da obra do filósofo francês, o mal se apresenta quando não se percebe a continuidade do Ambiente e a obrigatória relação de causalidades envolvendo tudo o que o se encontra manifesto. A ilusória percepção de descontinuidade das coisas acarreta na falsa noção de que os atos, sejam positivos ou negativos, não geram consequências e, portanto, não denotam a responsabilização do seu agente.


Ponto que pode gerar controvérsia se encontra no como o mal surge. Afinal, se tudo se encontra conectado, como a ilusão da descontinuidade se faz presente?


Muitas linhas filosóficas e religiosas alegam que o mal surge no mundo como mecanismo de contraste destinado a permitir que os homens percebam o Bem e, portanto, busquem vivenciá-lo intencionalmente. Nessa linha, por exemplo, costuma-se ensinar que:


Ele [o Yogue], por assim dizer, espalha a luz a da supraconsciência sobre o panorama inteiro dessa encarnação, vendo Deus como Aquele que esteve por trás de cada um de seus atos – até os maléficos. Portanto, o yogue não precisa examinar atos isolados, pois se dá conta do movimento da energia ao longo de toda a encarnação. Deus, na realidade, é quem age mesmo quando faz o papel de vilão. O próprio Satã, ao final das contas, não passa de instrumento de Deus. Como explicou o meu Guru, “O vilão é necessário numa peça de teatro, para que admiremos o herói”.[6] (enxerto nosso)

Apesar de correto em essência, tal explicação não explica o porquê da existência do mal, apenas revela o mecanismo estabelecido para dissolvê-lo. Isto é, compreender que o mal e o bem são polaridades do Bem é a forma de se colocar na Harmonia do Universo. Para compreender como o mal surge na Manifestação, faz-se necessário analisar a primeira parte da chamada Tábua Esmeralda:


Isto é verdade, sem mentira, muito verdadeiro
O que está embaixo é como o que está em cima
E o que está em cima é como o que está embaixo
E como todas as coisas vêm e vieram do Um
Assim todas as coisas são únicas por adaptação[7]

Dentre os ensinamentos contidos no citado trecho, para fins do presente tópico, destaca-se a parte final, a qual explica que “todas as coisas são únicas por adaptação”. A expressão “única por adaptação”, além de estabelecer que cada ponto da manifestação é singular, isto é, pode até possuir semelhantes, mas nada que seja o mesmo, também denota a maneira com que esse ponto único pode se manifestar.


Ao perceber, dentro de si, a potencialidade de ser o Um, o ponto pode deixar-se levar por esse impulso e, assim, estabelecer o seu próprio universo como sendo algo separado do restante do Um. Estabelecendo o seu próprio cosmos com aquilo o que ele ilusoriamente acredita ser o certo, o ponto entra em conflito com os demais que estão no mesmo nível do processo existencial e também estão criando os seus cosmos particulares. Compreendido esse processo no qual o mal se faz existente, o indivíduo pode atuar em si e, consequentemente, no meio em que se manifesta, de forma a se colocar em sintonia com a Harmonia do Universo.


Assim, sempre que vamos de um nível, parece que somos forçados a mudar nosso ponto de vista: deixando de observar as características dos elementos individuais, de uma forma que nos ajuda a distingui-los um do outro, e passamos a observar essas mesmas características, mas agora para ver como elas são associadas a fim de criar um novo nível de organização. (...) Se um sistema entra em funcionamento, então deve haver troca de informações, evidentemente, com o ambiente à sua volta, mas, também, com o próprio sistema. E, o interior do sistema, deve haver troca de informação não somente entre as partes que o constituem, mas, também, entre os níveis de organização.[8]


Dessa forma, compreende-se que o mal não existe no mundo para que o indivíduo compreenda o Bem, mas em decorrência da própria manifestação do Universo. Contudo, as mesmas leis que estabelecem a ocorrência do mal, fornecem o mecanismo necessário para o contorná-lo. Tal fato corrobora com a argumentação de que, além de onipotente, por ter criado o mal, o Uno é bom, pois fornece mecanismos para aqueles que se encontram manifestos mitigarem a ocorrência do mal e não se deixem aprisionar eternamente por ele.


Importante destacar que, uma vez que o mal existe na manifestação, o indivíduo, enquanto ser manifesto, não tem a capacidade de eliminá-lo totalmente, apenas de mitigar a sua ocorrência. Isso se dá pelo fato de que, mesmo em um cenário no qual o mal não se manifeste, ele se encontrará em potencialidade e, portanto, qualquer comportamento desarmônico é capaz de transformar essa potência em existência.


_________________________________________________________________________ [1]TRÊS INICIADOS. Caibalion. São Paulo: Daemon editora, 2018. Pg. 29. [2] ANTISERI, Dario; e REALE, Giovanni – História da Filosofia – filosofia pagã antiga, São Paulo: Paulus, 2003. Pg. 96. [3]MLODINOW, Leonard. O andar do bêbado. Como o acaso determina nossas vidas. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. Pg. 102-103. [4] Em uma tradução literal do francês, o termo mauvaise significa “ruim”. Entretanto, no pensamento do citado filósofo, ele costuma ser traduzido como “autoengano” ou “má-fé”. [5] STEVENSON, Leslie Forster, HABERMAN, David. Dez teorias da natureza humana. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Pg. 256. [6] KRIYANANDA, Swami. A essência do Bhagavad Gita: explicada por Paramhansa Yogananda. São Paulo: Editora Pensamento-Cultrix, 2007. Pg. 136. [7]TAMOSAUSKA, Thiago. Principia Alchimica. São Paulo: Daemon, 2021. Pg. 25. [8] ATLAN, Henri. As finalidades inconscientes in THOMPSON, William Irwin (org.) Gaia uma teoria do conhecimento. São Paulo: Gaia, 2014. Pg. 113.




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